quarta-feira, 19 de novembro de 2008


A fofoca pode até ganhar o nome inofensivo de “gossip”.Mas, como todo preconceito, maltrata e prejudica

Você sabia?... Aí vem chumbo, pode estar certo. Porque em 99% dos casos esta pergunta indica que uma história divertida ou escabrosa, envolvendo uma série de juízos sobre o que alguém fez ou deixou de fazer, está para ser contada. Aliás, contada ao gosto do autor da pergunta, naturalmente portador de uma licença que ninguém sabe quem deu para reproduzir detalhes, adivinhar pensamentos e intenções do protagonista da narrativa – a vítima, que ele expõe como um leitão assado, em público e lentamente, com o tempero da maldade e do ressentimento.
Interessar-se pela vida do próximo, manter-se informado sobre o que se passa à sua volta ou comentar os acontecimentos sociais com os amigos são coisas que poucas pessoas conseguem fazer sem ultrapassar a linha fina do respeito e da consideração com os alvos de suas observações. Não importa quem os crie -- da figura caricatural da “comadre” de cidadezinha do interior, que não perde um movimento do que se passa na casa da vizinha, aos colunistas de “gossips” e “paparazzis”, que fazem fortuna invadindo a vida das celebridades --, a fofoca e o boato se encontram enraizados no comportamento humano.
Para se ter uma idéia de quão antiga é a coisa, até nos muros de Pompéia -- cidade italiana soterrada pelo vulcão Vesúvio no ano de 79 d.C. -- os arqueólogos encontraram maliciosas inscrições “entregando” quem transava com quem e fazendo impiedosos comentários pondo em dúvida a paternidade de alguns dos seus cidadãos mais ilustres.
De lá para cá, pouca coisa mudou, a não ser pelo fato de a maledicência e os boatos passarem a atingir cada vez mais os negócios. Foi tomando como base os fuxicos das colunas sociais que, há alguns anos, a mulher do milionário americano Donald Trump arrancou dele, ao se divorciar, a nada desprezível soma de 50 milhões de dólares.
Mudando de hemisférios, sem, no entanto, deixar de caprichar na maldade, essas mesmas colunas publicaram, pouco depois, que o cantor goiano Leandro, da dupla com o irmão Leonardo, tinha morrido de Aids e que sua mulher, Andréia, também tinha a doença. Para converncer os fãs de que isto era mentira, o cantor teve de aparecer na TV, em horário nobre. Quanto a Andréia, foi preciso que ela fizesse o exame, publicado nos principais jornais do País. Mesmo assim, Leandro continuou sendo alvo dos fofoqueiros de plantão. Em sua luta contra um câncer no pulmão (que o vitimou poucos meses depois de descoberto), o cantor já havia perdido a voz e nunca mais voltaria a pisar num palco.
Mídia
Jean-Noel Kapferer, autor do livro “Boatos – O Mais Antigo Mídia do Mundo”, estudou com carinho acadêmico o nascimento e morte das notícias falsas, convencendo-se de que, apesar de incontrolável, “o boato” é uma produção social espontânea, sem definição nem estratégia”. E exemplifica, em seu livro, com um célebre boato dos anos 60 “sobre a morte de Paul MacCartney.”
Alguém, em 1969, ligou para uma rádio de Detroit, nos EUA, dizendo que ao fundo da faixa “Strawberry Fields”, do disco “Magical Mistery Tour”, dos Beatles, podia-se ouvir John Lennon murmurar: “I burried Paul” (“Eu enterrei Paul”). Poucos dias depois, a notícia da morte de Paul era publicada por um jornal de Michigan, ainda nos EUA, que dava como indício do ocorrido o fato de, na capa do LP “Abbey Road”, Lennon aparecer com roupas de padre, Ringo Star vestir-se de negro, como um papa-defunto, e Paul estar atravessando a rua descalço (os mortos aparecem assim nos rituais tibetanos, em moda na época). Além disso, na foto da capa do disco aparecia um Fusca com a placa 28 IF – a idade de Paul se (if) estivesse vivo. A história “pegou” de tal forma que nem aparecendo na capa da revista americana Time Paul conseguiu desmentir a notícia. Dizia-se que a foto era de um sósia do cantor.
No Brasil, alguns boatos de péssimo gosto também fizeram sucesso. Como quando se espalhou que as balas de determinadas marcas eram recheadas de cocaína, que em Belo Horizonte havia um bando de maníacos cortando os cabelos de garotas para fabricar perucas. Ou, pior, quando se disse que o boneco Fofão, criado por um ator do programa “Balão Mágico”, da TV Globo, era fruto de um pacto com o demônio, e milhares de bonecos foram queimados nas ruas por adultos e crianças.
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Sensação de poder
Se falar mal da vida alheia é algo que existe há tanto tempo, ocupa tanta gente e, inclusive, movimenta tanto dinheiro (ver jornais e revistas sensacionalistas, com tiragem de milhões de exemplares no mundo inteiro), também dá prazer e sensação de poder, garante a psicanalista junguiana Marisa Nogueira. Falar do outro é criar um fato diferente do que se viu, com o intuito de desqualificá-lo ou esconder uma verdade que ele quis divulgar”, explica.
Marisa, que tem formação em psicodrama e já realizou mais de 600 sessões sobre o assunto, pensa, também, que uma coisa é falar de alguém; outra, é contar um fato. Aquele que conta, segundo ela, cria cenas com conteúdos que só ele quer difundir, tornando-se, portanto, “autor” do acontecimento. “É o prazer de fazer história”, comenta.
Mas o falar mal, segundo a psicanalista, está carregado, na maioria das vezes, de sentimentos bem menos nobres do que o simples inventar. “Se presta a objetivos pouco elevados, como desqualificar, derrotar o oponente numa competição, exercer controle social ou, pior, exteriorizar o preconceito ou a pura maldade
”,
reforça Marisa.
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Mexericos da “Candinha”
O controle social é outra importante fonte produtora de fofocas e boatos, garantem os estudiosos do comportamento humano. Está personificado nas línguas das “tias”e “vizinhas”, principalmente nas comunidades menores, onde todos sabem da vida de todos. Mas, por que alguns sentem a necessidade de reprimir o comportamento alheio? “Porque quando os costumes mudam, eles exigem uma nova atitude tambén de quem impõem as regras, e isto pode levá-los a perder o controle da situação. É muito perigoso do seu ponto de vista”, explica Marisa Nogueira.
E quem são essas pessoas? “São geralmente aquelas de mais idade e, por isso, menos flexíveis e adaptáveis aos feitos novos”, responde a psicanalista. Então os mais jovens não fazem fofoca? “Fazem, sim”, revela Marisa, “quando têm em mente, por exemplo, prejudicar um concorrente, usando o fuxico como arma numa competição”.
Tomando a questão sob outro prisma, a psicóloga Hebe Nicolau vê na fofoca uma vivência da sexualidade. Em sua opinião, fofocar é um prazer com traços de sadismo, deslocado para a vida social e com graus variados de insanidade.Até certo ponto, a fofoca é um impulso normal da vida cotidiana marcado pela quebra de uma regra ética ao trazer, para o espaço público, o que é para ser deixado no âmbito privado”, afirma.
Hebe considera que a fofoca, embora universal, seja uma expressão característica da cultura brasileira da impunidade, da superficialidade das investigações sobre crimes políticos e sociais, que não conseguem se aprofundar, chegar aos tribunais, punir os culpados. Em vez disso, se contentam com o diz-que-me-diz. “Preenchem os espaços da mídia e distraem o povo, ocupando o lugar dos fatos importantes”, analisa. Outro objetivo do fofoqueiro, lembrado por Marisa, é exercer domínio sobre os demais como compensação por suas frustrações e ressentimentos. “Ele sempre se faz de vítima e acha que os outros devem pagar pela sua falta de poder.”
Hebe e Marisa podem ter opiniões divergentes sobre o que leva uma pessoa a fofocar, mas, em um ponto, as duas concordam: contra a fofoca não há defesa, pelo menos no âmbito privado. Elas afirmam que quanto mais alguém procura rebater o que é apregoado por seu detrator mais autoridade lhe confere, mais reconhece sua legitimidade. “Uma alternativa boa é a vítima destruir toda a autoridade do seu ego – a parte do ser preocupada com que os outros vão dizer e que quer satisfazer as expetativas sociais – e, em seu lugar, fortalecer o eu”, sugere Marisa.
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Ação por danos morais
Objetivo e alheio às profundezas dos conceitos psicológicos, como convém a um advogado, o criminalista Alberto Toron vê, naturalmente, a questão sob outro ângulo. Ele recomenda, a quem for vítima da falta do cuidado alheio com as palavras, que primeiro mova contra seu agressor uma ação por danos morais, visando reparação econômica pela ofensa sofrida. E, além disso, que ingresse também em juízo com a ação penal correspondente. “No Brasil, esses crimes não dão cadeia, mas fazem o réu perder a primariedade. Assim, se for condenado em outro processo criminal, perde o direito ao sursis, a suspenção condicional da pena, e aí, então, sofre a reclusão.”
Os processos podem não levar o culpado para a cadeia, mas servem, primeiro, para provar que quem ofende pode ficar desmoralizado e, além disso, ser punido de forma pecuniária. Segundo Alberto Toron, os processos com condenação de reparação econômica por ofensas estão ficando cada vez mais freqüentes e envolvem somas elevadas. Porém, mesmo criminalizada, a fofoca ainda corre solta, reconhece o advogado. Nunca vi alguém deixar de ofender outra pessoa porque a lei o proíbe disso. É falsa a idéia de que a norma jurídica intimida. Ela, no máximo, funciona como um reforço aos princípios morais que alguém recebe ao ser educado”, argumenta.
Assim, pelo que tudo indica, a melhor resposta que se pode dar a alguém de língua afiada demais é desmoralizá-la publicamente com uma condenação judicial. De quebra, nocauteando-a com um golpe certeiro em seu órgão mais sensível: o bolso.



* Matéria publicada na editoria Local do jornal goiano Diário da Manhã, em 21 de abril de 1998.

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